Artigo

CIDADANIA: SOLIDARIEDADE TRIBUTÁRIA E EXTRAFISCALIDADE

1. Introdução

O presente artigo tem como proposta inicial avaliar a relação entre Federalismo e Direitos Sociais, bem como os possíveis desdobramentos em relação à democracia e demais garantias vinculadas à cidadania asseguradas pela Constituição Federal, especialmente em face da crise verdadeiramente crônica que atinge o estado brasileiro.

Em um segundo momento pretendemos promover uma análise sucinta de alguns princípios constitucionais vinculados à tributação, especificamente o da solidariedade, sobretudo de modo a demonstrar que está ele incorporado à idéia de cidadania e dignidade da pessoa humana.

Por fim, o objetivo também é demonstrar as possibilidades resultantes da utilização da função extrafiscal do tributo como instrumento de solidariedade, no sentido da adoção de medidas capazes de diminuir as desigualdades, assegurando um processo crescente de resgate da cidadania.

Na realidade, um dos grandes desafios hoje enfrentados pelo Estado brasileiro é a busca de mecanismos aptos à realização, no plano concreto, dos direitos fundamentais. É preciso lembrar que sob o pretexto de uma alegada natureza programática, ou mesmo mediante o argumento estatal da reserva do financeiramente possível, os direitos fundamentais carecem de efetividade devido não só a ausência, mas também em face de equivocadas políticas públicas de inclusão social. No ponto, a extrafiscalidade pode representar alternativa interessante, no sentido de viabilizar direitos à saúde, à educação, à moradia, cuja real implementação depende de uma atuação estatal direta, através de prestações positivas concretas.

Sem dúvida alguma, essa atuação estatal na realização dos direitos sociais é conciliável com nosso modelo federativo de Estado, sobretudo se observarmos que a vocação constitucional brasileira, sobretudo a partir da vigência da atual Carta Política, contempla a possibilidade de comunicação harmônica e prodigiosa entre os diversos entes federados, tendo como vetor a cooperação e a busca da mitigação das desigualdades regionais.

2.  Federalismo e Direitos Sociais

Fundamental que de imediato seja ressaltado, que a Constituição Federal indica como fundamentos da República a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Em complemento, aponta como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza, com a redução das desigualdades sociais.

A isto, evidentemente, está relacionada a idéia de federalismo e democracia.  É que segundo Morbidelli (1999, p.45)

“as idéias de democracia estão intrinsecamente ligadas às idéias federalistas. O debate contemporâneo em torno do federalismo não pode prescindir de uma referência, ainda que sumária, à democracia, uma vez que o processo de democratização do Estado se insere na estrutura do Estado liberal entendido como o Estado que garante alguns direitos fundamentais. Nesse sentido, representa um método de aceitação de um conjunto de regras de procedimentos para a constituição de um governo”.

Cabe registrar, que a descentralização pode ser considerada uma das características do federalismo e estabelece um dos condicionantes da democracia. Nesta linha vale lembrar que a atual Carta Política brasileira aponta em seu preâmbulo diretriz orientada a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores a serem preservados em todas as esferas da federação.  Como bem ressalta Porfírio Júnior (2004, p.10), o objetivo do “federalismo é atingir uma situação em que exista equilíbrio de população, riqueza, território e poder entre os diversos entes autônomos”, sendo que as “disparidades regionais devem ser corrigidas através dos mecanismos de cooperação”.

Resta evidente, pois, que se mostra necessária a iniciativa do Estado para assegurar as garantias apontadas. Neste sentido registro de Mendes (2002, p.139-140):

“Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não-intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção da sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos.”

Desta forma, os direitos sociais muito embora não se encontrem redigidos no catálogo de direitos e garantias individuais do art. 5º, da Constituição, não estão destituídos da fundamentalidade legitimadora. Os direitos às apontadas prestações são inequivocamente direitos fundamentais autênticos, fato que autoriza a, sua plena aplicabilidade, nos termos do  § 1º, do art.5º, da Lei Maior.  A partir da evidência de que os direitos sociais dependem diretamente de prestação estatal positiva, indispensável que seja ressaltado que tais direitos demandam dispêndios financeiros de todos os entes federados, na maioria dos casos insuficientes à contemplação de todos os indivíduos.

Certamente por esta razão os direitos sociais muitas vezes são classificados como direitos relativos, seja por estarem na dependência de recursos financeiros em parte indisponíveis, seja porque estão vinculados a uma legislação regulamentadora, que na maioria das vezes depende de previsão orçamentária.

Nestas condições, o aspecto econômico constitui obstáculo à concretização dos direitos sociais, de efeito muitas vezes mais significativo que eventuais barreiras de ordem meramente regulatória, pelo que a vontade política acaba constituindo componente decisivo.  Nesta linha assinala Barreto (2003, p.120) :

“A alocação de recursos para suprir demandas sociais depende, em última análise, da vontade política que se expressa no estado democrático através do sistema representativo, quando ocorre a escolha pelo eleitor dos projetos públicos de sua preferência. Tanto a questão da liberdade como da igualdade, constituem o pano de fundo diante do qual serão escolhidas as alternativas de políticas públicas apresentadas pelos partidos políticos. A sociedade que deverá escolher quais as opções político-econômicas e, portanto, em quais setores serão aplicados preferencialmente os recursos públicos.”

Indispensável, pois, para adequado atendimento das demandas sociais, que seja buscada a harmonização das diversas esferas do poder político. E isto somente pode ser alcançado com uma perfeita distribuição de competências, resultado de uma federação justa e equilibrada, sobretudo porque as mencionadas demandas podem variar, como de fato variam, de acordo com a características e peculiaridades de cada região do país.

3. Princípios tributários e valores jurídicos

Os princípios tributários constantes da Carta Política brasileira, podem ser considerados sob a ótica de valores que orientam a interpretação do texto constitucional.  Carvalho (2002, p.141-142) e Reali (1994, p.142-145) sustentam que enquanto valores jurídicos, os princípios tributários possuem em sua ontologia importantes características, apontando a bipolaridade[1], a referibilidade[2], a preferibilidade[3], a incomensurabilidade[4], a hierarquia[5], a base empírica[6],  a historicidade[7], e a inexauribilidade[8].

A partir das características acima apontadas é possível afirmar que se mostra extremamente precisa a redação da Carta Magna, ao indicar no § 2º do artigo 5º, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

Como desdobramento lógico da norma transcrita acima, resta evidente que os valores jurídicos não podem ser vistos de forma restrita. E isto por quê? Porque existe um conjunto de direitos, deveres e garantias de natureza principiológica, que podem ser perfeitamente construídos com base nos valores jurídicos que de forma implícita e explícita, foram recepcionados pelo sistema jurídico nacional.

Seguindo esta linha de colocações, não há como negar que além dos princípios tributários indicados de forma expressa na Constituição Federal, como por exemplo, o da capacidade contributiva, previsto no art. 145, § 1º, o da legalidade, constante no art. 150, I, o da anterioridade tributária, consagrado no art. 150, III, e o da isonomia, assegurado no art. 150, II, é possível a identificação de outros que resultam dos direitos, garantias e deveres adotados pelo regime constitucional tributário, nos termos apontados pelo art. 5º, § 2º da Carta Magna.

Para fins de desenvolvimento deste trabalho, interessa mais o princípio da solidariedade, que será tratado especificamente no capítulo seguinte. Todavia, necessário aqui se mostra ao menos pequena referência a outros três, em face da vinculação com a temática central deste ensaio.

O primeiro a referir é o princípio da liberdade fiscal.  Significa que o tributo é o preço da liberdade, no dizer de Torres, por servir para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Estado. No entanto, não é suficiente apenas este enfoque. É indispensável também que se garantam as condições iniciais da liberdade mediante a proibição de incidência fiscal sobre o mínimo necessário para uma existência digna (1998, p.685).

O princípio da liberdade fiscal possui, assim, dupla face. De um lado é um direito fundamental e, de outro, um dever fundamental, como ensina Nabais (1998, p.679).  Significa dizer que na ótica do dever fundamental, submete-se a uma ética fiscal privada, uma ética de conduta que norteia o cidadão-contribuinte em direção ao dever fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidade contributiva. De outro lado, como direito fundamental, o princípio da liberdade fiscal subordina o Estado a uma ética fiscal pública, ou seja, o Estado é constitucionalmente obrigado a reconhecer o princípio da liberdade fiscal, aceitando mediante o devido processo legal, a opção fiscal adotada pelo contribuinte quando no limite de sua capacidade contributiva.

O segundo princípio a ser destacado é o da justiça tributária, que encontra sua base empírica no art. 3º, I, e no art. 5º § 2º, ambos da Constituição Federal. Ética é justiça na lição de Pergoraro (2001, p.13), sendo possível afirmar que a justiça está no centro de qualquer discussão ética. Transportando esta idéia ao princípio em análise, é possível dizer que tributar de forma ética é tributar em conformidade com a justiça tributária. Ademais, tal idéia deve ser tomada no devido espaço social, eis que a ética e a justiça não podem ser vistas individualmente, mas sim em nível coletivo.

Significa admitir a idéia de que cidadãos-contribuintes, ao mesmo tempo em que pagam tributos, também mantêm uma espécie de fundo comum público, destinado a garantir a oferta de bens e de serviços impossíveis de serem assegurados com eqüidade a todos os cidadãos, se entregues ao mercado. A garantia da oferta básica de tais bens materiais e imateriais, passa obrigatoriamente pela não tributação do mínimo existencial, como antes já sinalizado.

Por fim, o terceiro princípio é o da cidadania fiscal. Na realidade, a cidadania adquire densidade jurídica em face do que dispõe o inciso II, do art. 1º, da Constituição Federal. A cidadania está inserida entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, correspondendo sob uma perspectiva tributária a um conjunto de deveres e direitos do cidadão frente ao fisco.

Feitas estas rápidas considerações, resta agora análise mais detalhada a respeito do princípio da solidariedade fiscal, o que será feito a seguir.

4. Princípio da Solidariedade Fiscal

A solidariedade[9] está associada com a idéia de que todos os cidadãos são responsáveis pela boa estruturação social. Todos unidos[10] em busca de um ideal de vida em comum:

A idéia de solidariedade sinaliza no sentido de que as contribuições sociais, necessárias ao financiamento da seguridade social, devem ser suportadas por todos os que participam do mesmo grupo socioeconômico (ex. patrões e empregados), ainda que alguns deles não recebam diretamente os benefícios. Muito para notar que a solidariedade, como salienta a doutrina germânica, cria o sinalagma não apenas entre o Estado e o indivíduo que paga a contribuição, mas entre o Estado e o grupo social a que o contribuinte pertence, considerado este às vezes em função do trabalho e da profissão e outras vezes em razão de situações existenciais (velhice, doença, gravidez, morte, etc) (Torres, 2005, p. 222).

A solidariedade sob a ótica acima descrita está ligada diretamente ao dever de pagar tributos, já que o seu ideário está pautado pela fraternidade e pela busca de conscientização da responsabilidade de cada indivíduo para a manutenção de uma convivência harmoniosa, numa sociedade mais justa.

A idéia de solidariedade se projeta com muita força no direito fiscal por um motivo de extraordinária importância: o tributo é um dever fundamental. Sim, o tributo se define como dever fundamental. Sim, o tributo se define como o dever fundamental estabelecido pela Constituição no espaço aberto pela reserva da liberdade e pela declaração dos direito fundamentais. Transcende o conceito de mera obrigação prevista em lei, posto que assume a dimensão constitucional. O dever não é pré-constitucional, como a liberdade, mas se apresenta como obra eminentemente constitucional. Ora, se a solidariedade exibe primordialmente a dimensão do dever segue-se que não encontra melhor campo de aplicação que o do direito tributário, que regula o dever fundamental de pagar tributo, um dos pouquíssimos deveres fundamentais do cidadão do Estado Liberal, ao lado dos de prestar os serviços militar, compor o júri e servir à justiça eleitoral (Torres, 2005, p. 181-182, grifos do autor).

Torres (2005, p.584) afirma ainda que a solidariedade fiscal está ligada à liberdade, na medida em que o dever de pagar tributos deve ser realizado por cada indivíduo inserido na sociedade, isso, é claro, se a cobrança não se transformar numa opressão por parte do Estado:

A solidariedade fiscal está imbricada na liberdade, pois o dever fundamental de pagar os tributos é correspectivo à liberdade e os direitos fundamentais: é por eles limitado e ao mesmo tempo lhes serve de garantia, sendo por isso o preço da liberdade. Mas direitos e deveres fundamentais não se confundem, em absoluto, pois a liberdade que se transforma em dever perde o seu status negativus. O dever fundamental, por outro lado, integra a estrutura bilateral e correlativa do fenômeno jurídico: gera o direito de o Estado cobrar tributos e, também, o dever de prestar serviços públicos; para o contribuinte cria o direito de exigir os ditos serviços públicos.

A solidariedade influencia a liberdade na medida em que estabelece o vínculo de fraternidade entre os que participam do grupo beneficiário de prestações positivas, máxime as relacionadas com os mínimos sociais e com os direitos difusos.

A solidariedade está também ligada à justiça, no sentido de que se busca a redistribuição de renda e a proporcional capacidade contributiva:

A solidariedade se aproxima da justiça por criar o vínculo de apoio mútuo entre os que participam dos grupos beneficiários da redistribuição dos bens sociais. A justiça social e a justiça distributiva passam pelo fortalecimento da solidariedade. Os direitos sociais, ou direitos de segunda geração como preferem outros, dependem dos vínculos da fraternidade. Solidários são os contribuintes e os beneficiários das prestações estatais, em conjunto. Diz Isensse que “às pretensões solidárias correspondem deveres solidários”.

A solidariedade entre os cidadãos deve fazer com que a carga tributária recaia sobre os mais ricos, aliviando-se a incidência sobre os mais pobres e dela dispensando os que estão abaixo do nível mínimo de sobrevivência. É um valor moral judicizável que fundamenta a capacidade contributiva e que sinaliza para a necessidade da correlação entre direitos e deveres fiscais (Torres, 2005, p. 584).

A idéia, pois, de solidariedade, se projeta atualmente com muita intensidade, sobretudo a partir da certeza de que há um dever fundamental de pagar tributo, como antes foi destacado. De certa forma ela exterioriza a dimensão deste dever do cidadão no Estado Social Fiscal.  Por isso a solidariedade entre cidadãos deve implicar em que a carga tributária recaia sobre os mais ricos, tendo menor incidência sobre os mais pobres. E mais: que sejam dispensados aqueles que estiverem abaixo do nível mínimo de sobrevivência, visto que corresponde a um valor moral que fundamenta a capacidade contributiva e que sinaliza para a necessidade da correlação entre direito e deveres fiscais.

Os registros acima feitos demonstram que medidas visando a busca concreta do desenvolvimento da sociedade brasileira, não podem ignorar o princípio da solidariedade fiscal. E isto vale para desde a criação e interpretação das normas legais, até a precisa e justa aplicação dos recursos, mediante a adoção de políticas públicas eficientes.

Não há dúvidas de que vivemos em um país profundamente marcado pela injustiça. A sua transformação em um verdadeiro Estado de direito democrático impõe um processo de inclusão social da parcela menos favorecida da população, tudo com amparo no princípio da solidariedade fiscal. Trata-se de uma exigência atual e urgente, compromisso da ética fundamental de ampla solidariedade, de respeito e proteção da dignidade da pessoa humana.

Bem fixada a idéia de solidariedade fiscal, resta agora indicar formas alternativas para a implementação dos direitos sociais, tomando por ideal o apontado princípio e mediante análise do possível papel da extrafiscalidade.

5. A extrafiscalidade como instrumento de solidariedade

Machado (2003, p.68) afirma que o tributo quanto ao seu objetivo pode ser: “a) Fiscal, quando seu principal objetivo é a arrecadação de recursos financeiros para o Estado; b) Extrafiscal, quando seu objetivo principal é a interferência do domínio econômico, buscando um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros” [...].

De acordo com Baleeiro (1999, p. 576) costuma-se:

denominar de extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado dos meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo coma sua função social ou a intervir em dados conjunturais (injetando ou absorvendo a moeda em circulação) ou estruturais da economia. Para isso, o ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido ao legislador tributário a faculdade de estimular ou desestimular comportamentos, de acordo com os interesses prevalentes da coletividade, por meio de uma tributação progressiva ou regressiva, ou da concessão de benefícios e incentivos fiscais.

Rodrigues (2005, p 58) afirma que:

[...] tem-se que a função fiscal visa tão-somente arrecadar recursos para os cofres públicos, ao passo que a função extrafiscal se corporifica em verdadeira política pública de ingerência no meio econômico ou social, tornando mais ou menos gravosos os tributos, objetivando um fim determinado, fim esse que, levando-se em conta a função do Estado deve estar sintonizado com a realização do Bem Comum, ou seja, com a busca da concretização dos direito fundamentais do ser humano.

Em complemento registra que o caráter extrafiscal do tributo apresenta-se como forma de incentivo ao setor privado para a implementação de interesses públicos:

O fato é que a extrafiscalidade sempre atuou e se fez presente, nalguns períodos de modo menos intenso e desenvolvido, noutros de modo mais marcante e criativo, espalhando-se por formas e instrumentos variados.

A extrafiscalidade desenvolve-se não só por intermédio da imposição tributária, que vai desestimular certas atividades do setor privado, como por meio de isenções, imunidades e incentivos que vão, ao contrário, estimulá-las caso seja de interesse público.

Berti (2004, p.11) destaca as vantagens da utilização do caráter extrafiscal dos impostos:

[...], particularmente em relação aos impostos – espécie tributária cuja receita não está vinculada a alguma contrapartida imediata do Estado – apresenta-se muito conveniente ao Poder Público, o qual pode alcançar escopos os mais variados possíveis, não necessariamente expressos pela obtenção de recursos para o financiamento dos gastos estatais, através da criação e desenvolvimento de instrumentos tributários como, por exemplo, a alteração de alíquotas e de bases de cálculos, a instituição de diferimentos no pagamento dos débitos tributários e a oferta de inúmeros outros benefícios fiscais, mediante normas jurídicas próprias.

É possível ainda ao Estado agir em campos variados, mediante o uso extrafiscal de impostos, como são exemplo a regulamentação dos mercados financeiros e de câmbio, o incremento ou retração das operações inerentes ao comércio exterior e ainda o desenvolvimento urbano com adequação do uso da propriedade aos fins sócias que a mesma deve perseguir, consoante inclusive determinação constitucional.

Inegáveis, pois, as vantagens possibilitadas pelo uso da função extrafiscal do tributo, em especial como instrumento de estímulo e inibição de atividades consideradas positivas ou negativas à sociedade.  Nesta linha sustenta Berti (2004) que os princípios inspiradores da extrafiscalidade são o da supremacia do interesse público sobre o privado e o da indisponibilidade dessa supremacia. Para ele:

[...] sempre que interesses da comunidade como um todo estejam sob discussão, os interesses particulares deverão ceder espaço a fim de que os primeiros sejam preservados e com isto a segurança da sociedade com um todo seja resguardada. Assim por exemplo, o combate ao desemprego ou a preservação do nível de emprego, a utilização racional da propriedade a fim de que a mesma cumpra com sua função social, a preservação do meio ambiente e de condições fitosanitárias mínimas para a sobrevivência do homem, a preservação da saúde das populações urbana e rural, a segurança pública, o desenvolvimento da indústria, os interesses individuais, coletivos e difusos dos consumidores, o aumento do saldo da balança comercial no comércio exterior, o estímulo ou desestímulo às importações , o exercício do poder de política sobre o mercado financeiro, o monitoramento e controle do câmbio e das operações de grandes investidores, etc.

Todos estes objetivos, distintos do simples escopo arrecadatório consubstanciado pela obtenção desenfreada de recursos públicos para financiar grandes obras e investimentos do Estado, podem ser alcançados ou, ao menos, facilitados e instrumentalizados mediante a utilização racional dos tributos, particularmente dos impostos, cuja receita não está vinculada (Berti, 2004, p. 35-36).

Nesta linha é possível perceber que a extrafiscalidade assume especial importância para a concretização das atividades de interesse público. Daí a sua relação com a idéia de solidariedade, na medida em que deve ser buscada a desvinculação do caráter apenas arrecadatório do tributo, permitindo ótica diversa, que permita a implementação de políticas direcionadas ao atendimento das necessidades sociais.  Assim

[...] a extrafiscalidade é corolário do Estado Social e tem por missão criar condições para que o Poder Público tenha facilitada a sua tarefa de preservar alguns valores que são muito caros à sociedade, cuja realização é de fundamental importância, sobretudo com forma de satisfazer ao interesse público que sempre deve preponderar sobre o interesse privado. Tal escopo é o fim do Estado e também o meio para o desenvolvimento efetivo de um Estado de Direito que realize a justiça fiscal. Evidentemente, há parâmetros para a realização destes fins, todos muito bem definidos na Constituição, geralmente sob a forma de enunciados conhecidos como “Princípios Constitucionais Tributários” ou “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”.

Desta forma, é possível afirmar que a extrafiscalidade foi objetivada pelo legislador constituinte, tanto que o mesmo previu regras específicas para estimular seu uso, contudo sempre guardados o respeito e a adequação ao Sistema Tributário como um todo (Berti, 2004, p. 36-37).

Desta forma, considerando-se a crise vivenciada pelo Estado, cujo fracasso reside na ausência de efetivação do social, a extrafiscalidade apresenta-se como alternativa possível e eficiente. Sem dúvida alguma, a crise enfrentada pelo Estado brasileiro em face da ineficiência na implementação de medidas capazes de diminuir as desigualdades sociais, pode ser atacada com políticas extrafiscais.

Todavia, há que se ter um cuidado. A extrafiscalidade não pode ser transformada em instrumento de guerra fiscal, estimulando uma corrida predatória entre entes da federação. Embora a concorrência fiscal não seja necessariamente um mal, eis que pode ser elemento importante na busca de uma maior eficiência do Estado, estimulando a competitividade e ampliando mercados, a verdade é que a falta de regras claras acaba quase sempre favorecendo as unidades federativas com condições de oferecer melhores vantagens ao setor empresarial privado.

Nestes casos, as medidas extrafiscais adotadas nada mais serão do que distorções dos reais objetivos do legislador, sendo mero resultado de interesses políticos e econômicos pontuais, razão pela qual devem ser evitadas e combatidas, sobretudo porque totalmente desvinculadas do princípio da solidariedade.

6. Considerações finais

O pacto federativo expresso pela atual Constituição Federal obedece a uma vocação democrática sem precedentes, sobretudo se levando em conta o reconhecimento não só de amplos direitos e garantias individuais, como também de um conjunto de direitos fundamentais sociais, como saúde, educação, previdência social e moradia.

De outro lado, verifica-se igualmente uma significativa divisão de competências, permitindo a ampliação da capacidade de ação por parte dos entes federados – Estados-membros,  Distrito Federal e Municípios.

Dentro deste contexto normativo constitucional, é fácil perceber que os direitos sociais somente poderão se efetivar no plano concreto a partir do estabelecimento pelos referidos entes federados de medidas de conjunta cooperação, levando em conta especialmente a existência de competências comuns.

A verdade é que o modelo federativo brasileiro possibilita a comunicação e atuação conjunta e harmônica entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, cada ente contribuindo na medida de suas condições, na implementação de políticas públicas dirigidas à mitigação das desigualdades sociais, possibilitando resultados mais eficazes do que os decorrentes de atuações isoladas. É preciso que se consolide está idéia, neutralizando medidas que sinalizem para o afastamento dos entes federados na implantação de políticas publicas, até porque a Constituição atual estabelece no parágrafo único do art.23, que lei de natureza complementar fixará normas para cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no âmbito nacional.

Sem dúvida alguma, a norma indicada acima consagra o que poderíamos chamar de princípio da cooperação, que não deve ser visto como mera alternativa ou faculdade, mas sim como verdadeira obrigação do Estado.  Precisa aqui se mostra a lição do Prof.. Celso Bastos (1995, p.11), quando afirma que “a resolução da questão federativa levaria necessariamente à solução de grandes problemas do Estado, tais como: melhor afetação dos vastos recursos nacionais, maior controle por parte da população sobre a atividade estatal, maior eficiência da máquina arrecadatória dos poderes públicos, possibilidade de maior participação do povo nas decisões oficiais, entre outras”.

Nesta linha, a referência feita a um maior controle da sociedade sobre a atividade governamental e a uma maior eficiência na atividade financeira do Estado, comportando arrecadação, gestão e gastos, bem demonstra a vinculação dos princípios federativos com o da solidariedade e com a extrafiscalidade.  E não poderia ser de outra forma, até porque como se procurou demonstrar no desenvolver deste artigo, a solidariedade pode se dar via extrafiscalidade, desde a não tributação do mínimo essencial, até a concessão de benefícios fiscais que estimulem e permitam o desenvolvimento de determinadas regiões ou de segmentos da atividade econômica.

O desafio, portanto, é superar impasses e dúvidas, afastando interesses exclusivamente pessoais e regionais, aprofundamento as discussões acerca dos necessários ajustes sociais que se impõem atualmente no Brasil, de modo a garantir efetividade aos direitos sociais assegurados pela Constituição Federal.

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[1] significa que onde houver um valor, existirá também um desvalor

[2] o valor importará na necessidade de uma tomada de posição perante alguma coisa a que está referido

[3] diante de valores são estabelecidas preferências

[4] os valores são incomensuráveis, pelo que não há como medi-los.

[5] há uma tendência à graduação hierárquica

[6] os textos normativos estão vinculados à experiência, para nela assumir objetividade

[7] os valores vão sendo construídos com base na evolução do processo histórico-social

[8] os valores sempre excedem os bens em que se objetivam.

[9] “A solidariedade era valor fundante do Estado de Direito e já aparecia na trilogia da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Solidariedade é fraternidade. Sucede que o pensamento jurídico posterior a Kant exacerbou a idéia de liberdade, diluindo-a na de legalidade, com o que ficaram esquecidas as de justiça e solidariedade. A própria igualdade, que poderia se abrir às considerações de justiça ficou presa a ideologias conflitantes: de um lado o liberalismo igualitário, revolucionário ou radical, com a figura exponencial de Rousseau, que absolutizava o conceito de liberdade e atribuía à igualdade certo conteúdo político e econômico; de outra parte, o liberalismo de tipo inglês, moderado ou doutrinário, que defendia, com Toqueville, Benjamim Constant e outros, o conceito negativo de liberdade política e civil, restringindo a igualdade aos aspectos formais e econômicos da ausência de constrição estatal” (Torres, 2005, p. 180-181, grifos do autor).

[10] Há que se registrar que a solidariedade deve ser buscada mesmo nos pequenos grupos que compõem a sociedade, como observa Torres (2005, p. 585): “Muito para notar que a solidariedade, como assinala a doutrina germânica, cria o sinalagma não apenas entre o Estado e o indivíduo que paga a contribuição, mas entre o Estado e o grupo social a que o contribuinte pertence, considerando este às vezes em função do trabalho e da profissão e outras vezes em razão de situações existenciais (velhice, doença, gravidez, morte, etc.). Porém, a solidariedade não se esgota em ser uma atitude frente ao Estado, senão que também opera dentro do próprio grupo: os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser respeitados; os subgrupos, como os dos patrões e dos empregados, seguem diferentes subprincípios derivados do princípio maior da solidariedade, como sejam os do equilíbrio de risos e do dever de assistência; a solidariedade é uma decorrência da responsabilidade social do empregador (sozialen Verantwortung Von Arbeitgebern)”.